É possível reverter a concessão de uma empresa pública à iniciativa privada? Entenda
Nos últimos anos, o Rio Grande do Sul e Porto Alegre vêm ampliando a transferência de serviços públicos para a iniciativa privada. O Sul21 analisou o histórico de concessões no Estado e na Capital, verificando que, mesmo quando as críticas à qualidade se avolumam, o que poderia indicar a necessidade de encerramento dos contratos, o caminho para reverter essas transferências é complexo e pouco viável na prática.O governo estadual e a Prefeitura da Capital têm adotado modelos que envolvem a cessão de serviços ao setor privado. Os Executivos diferenciam em categorias: consideram “privatização” a venda completa de ativos públicos e “concessão” a transferência temporária da gestão, mediante contrapartidas e mantendo a titularidade pública dos bens. Junto ao segundo modelo, há também o formato de Parcerias Público Privadas (PPPs).Entre as privatizações já concluídas no Estado estão as da CEEE Distribuição, CEEE Transmissão, CEEE Geração, Sulgás e Corsan. No campo das concessões, há projetos em operação como a gestão de rodovias, o Presídio de Erechim, o Cais Mauá e o Porto de Rio Grande, além de uma série de propostas em desenvolvimento.No município de Porto Alegre, as concessões e PPPs incluem a gestão de abrigos de ônibus, iluminação pública, relógios eletrônicos, placas de ruas, o Auditório Araújo Vianna, o Teatro Túlio Piva, o Parque Harmonia, o Trecho 1 da Orla do Guaíba e a instalação de usinas fotovoltaicas.Atualmente, na Capital, as atenções estão voltadas para o processo de privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). A Prefeitura anunciou a concessão parcial dos serviços da autarquia. A proposta, enviada pelo prefeito Sebastião Melo (MDB) à Câmara Municipal em 21 de maio, prevê a transferência à iniciativa privada das atividades de distribuição de água e tratamento de esgoto. Já a captação e o tratamento da água, a drenagem urbana e os sistemas de proteção contra cheias seguiriam sob gestão do poder público.Audiências públicas estão sendo realizadas nas 17 regiões do Orçamento Participativo para debater o projeto. Na primeira audiência, realizada na Câmara de Vereadores, o governo municipal reforçou que se trata de uma concessão, e não de uma privatização. “Nós estamos falando de concessão, e concessão é transferir temporariamente um serviço para uma empresa privada realizar aquele serviço, ao passo que o Município a qualquer momento pode retomar aquele serviço, totalmente diferente da privatização”, afirmou o secretário-geral de governo, André Coronel, na ocasião. Conforme o secretário, a possibilidade de reversão da concessão está prevista nos contratos firmados com as empresas, mas não se trata de um processo simples. A retomada do serviço pelo poder público não pode ocorrer “a qualquer momento”, exigindo trâmites complexos e que raramente são utilizados.Entre as possibilidades de rescisão contratual estão causas mais comuns, como o vencimento dos prazos de realização de serviços ou a falência da empresa responsável. No entanto, quando os motivos envolvem outras questões, como a insatisfação da população com a qualidade dos serviços prestados, a rescisão segue caminhos jurídicos específicos, como a encampação ou a caducidade do contrato.A encampação é um instrumento por meio do qual o poder público pode extinguir antecipadamente um contrato de concessão e reassumir a prestação de um serviço anteriormente delegado a uma empresa privada. Essa retomada ocorre antes do término do prazo contratual e deve ser motivada por razões de interesse público.Como aponta o professor Aragon Érico Dasso Júnior, da Escola de Administração da UFRGS e especialista em administração pública, para que a encampação de um contrato aconteça, basta que o poder público entenda não haver mais interesse público na concessão e decida interrompê-la. Mas, para que possa fazer isso, há dois requisitos.Primeiramente, para que a encampação seja possível, o governo responsável pela concessão precisa indenizar a empresa privada pelos investimentos já realizados durante a vigência do contrato. Segundo Aragon, esse já é um dos principais entraves do processo. “A grande questão é: quem regula isso? Quem é que consegue afirmar com precisão quanto o privado gastou e quanto arrecadou? Historicamente, todos os governos que tentaram encampar não conseguiram por causa disso primeiro, porque havia divergência nos números”, explica.Mesmo que se chegue a um acordo sobre os valores e a indenização seja viabilizada, há ainda um segundo requisito: a aprovação do processo de encampação pela Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal, conforme o nível de governo responsável pela concessão. Na avaliação de Aragon, essa exigência representa uma dificuldade adicional no contexto do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre, já que, historicamente, a maioria dos parlamentares tem se posicionado favoravelmente às concessões.“O que poderia acontecer é o governante, como o Melo ou o Leite, nas próximas eleições não eleger um sucessor. Daí entra alguém de uma orientação política completamente diferente e ele deseja encampar. Mas ele não vai ter força política provavelmente para encampar, mesmo que ele tenha a convicção de que quer”, explica.Já a caducidade se aplica quando a concessionária descumpre obrigações contratuais. No entanto, essa medida também é rara, porque implica a interrupção imediata da prestação de serviços pela empresa privada.“Algum governo tem coragem de interromper o contrato gerando, por exemplo, a possibilidade da interrupção do serviço e um caos administrativo? Tu desmontou todo teu aparelho de prestação de serviço, quem vai assumir agora?”, questiona o professor.Aragon considera que o discurso de que a concessão pode ser revertida a qualquer momento é, na prática, enganoso. “Quantos casos nós temos de caducidade e de encampação em concessões no Brasil? Vamos ver que é um número mínimo e, portanto, não é uma prática. A prática é virar refém do mercado e do concessionário”, pontua. Na história recente do Rio Grande do Sul, apenas um caso de concessão foi encerrado antes do fim do contrato: o do Cais Mauá. Em 2010, a concessão foi assinada com a empresa Cais Mauá do Brasil (CMB), que não executou as obras dentro do prazo estipulado. Após disputa judicial, o governo estadual conseguiu encerrar o contrato em 2019.Aragon também contesta outra informação trazida pelo secretário-geral de Porto Alegre em seu pronunciamento na audiência pública: a ideia de que concessões podem ser revertidas, enquanto privatizações não. Segundo o professor, essa distinção não é totalmente precisa. No caso das privatizações, mesmo se tratando de uma venda definitiva, a reversão também é possível, por meio da reestatização do serviço ou órgão. No entanto, ele ressalta que, assim como ocorre nas concessões, esse processo é complexo e não possui um histórico de efetivação no Brasil.O professor também destaca que essas distinções reforçam o equívoco de afirmar que uma concessão não se trata de uma privatização. Conforme explica, a concessão configura, sim, uma forma de privatização, pois “a concessão é um modelo de privatização, é a privatização por um tempo determinado”.Para o professor Aragon, tanto o governo municipal de Porto Alegre quanto o governo estadual do Rio Grande do Sul possuem um compromisso com o setor privado. “Há a premissa central no tocante à gestão pública no contexto da administração pública, que é o domínio da lógica do privado sobre a lógica do público. Esses governos têm a crença e o compromisso de que o setor privado é mais eficiente do que o setor público”, diz. Fonte: Sul 21/ Imagem: Giullia Fernandes/Sul21